Editorial — O relógio até marcava outra hora, mas a cena era a mesma. Pela segunda vez, em quatro meses, motoristas e passageiros de ônibus e carros se atiravam no chão da Avenida Brasil implorando para não virarem estatística durante uma operação policial no Complexo de Israel. Como em 24 de outubro de 2024, o tiroteio aconteceu na altura da Cidade Alta, Zona Norte do Rio de Janeiro.
Os vídeos de eventos como esses são sempre perturbadores. Ano passado, uma menina chorava desesperada, deitada no corredor de um ônibus, enquanto sua mãe tentava acalmá-la em meio aos tiros que fechavam a mesma via. Há cinco dias, uma mulher filmou o próprio desespero, enquanto tentava se abrigar na Via. Nos dois episódios, a realidade é escancarada: o descontrole da violência armada coloca a todos em risco, mas alguns lugares são mais afetados.
No caso do Grande Rio, chama a atenção os dados da Zona Norte da capital. Só em 2025 já registramos 168 tiroteios. Para efeito de comparação: foram 78 na Zona Oeste, sete na Zona Sul, nove no Centro, 83 na Baixada Fluminense e 49 no Leste Metropolitano.
A operação do último dia 12 foi justificada pela possível prisão de um dos criminosos mais procurados do estado. Ele não foi preso. Mas duas pessoas foram baleadas e outras duas feridas dentro de um ônibus, após tiros quebrarem os vidros do coletivo. Entre as vítimas está Kelly, 45 anos, socorrida por moradores e levada para o pátio de uma escola. Naquele dia, as aulas foram interrompidas pelos tiros. Não é um caso único, em 2024 o Fogo Cruzado mapeou 1.968 unidades de ensino, que tiveram dias letivos comprometidos por tiroteios em seu entorno.
Não é coincidência que a Avenida Brasil e a Linha Vermelha, principais vias expressas do Rio, sejam constantemente cenários desses episódios. As vias cortam ou margeiam diversas áreas disputadas e controladas por grupos armados. O Fogo Cruzado mapeou, somente em 2024, 59 tiroteios que impactaram diretamente o funcionamento da Avenida Brasil e Linha Vermelha. Foram em média cinco ocorrências por mês. Em 47,5% dos casos (28), os tiroteios aconteceram durante operações policiais, evidenciando como a política de segurança pública baseada no confronto afeta o direito de ir e vir de milhões de pessoas. Até 16 de fevereiro de 2025, já registramos em nosso banco de dados 11 tiroteios nessas vias expressas, sendo nove somente na Avenida Brasil e dois na Linha Vermelha.
O impacto dessa violência vai muito além das horas em que a via fica fechada. Cada episódio representa trabalhadores que não conseguem chegar ao emprego, não conseguem voltar para suas casas, pacientes que perdem consultas médicas, estudantes impedidos de frequentar as aulas, e não é à toa que a segurança pública virou a maior preocupação do brasileiro, segundo a Pesquisa Quaest de janeiro de 2025. São vidas atravessadas pelo medo e pelo trauma.
O saldo trágico de outubro na Avenida Brasil resume bem esse cenário: três trabalhadores foram mortos e outros três foram feridos por balas perdidas. A operação policial gerou uma série de transtornos que se estenderam muito além da Avenida Brasil: outras vias foram fechadas, 35 linhas de ônibus regulares, o BRT Transbrasil e o Ramal Saracuruna da Supervia tiveram suas operações interrompidas; 17 unidades escolares suspenderam as aulas; e dois centros de saúde ficaram impossibilitados de atender pacientes. Do ponto de vista das forças policiais, o resultado da operação resumiu-se à apreensão de duas granadas e à prisão de um suspeito, evidenciando uma desproporcionalidade entre a ação e seus impactos sociais.
Em 2025, estamos no ponto médio da atual gestão dos governos federal e estaduais, momento oportuno para uma análise aprofundada das políticas de segurança pública. Os dados da violência armada e a percepção da população mostram que como os governos escolherão priorizar (ou não) estas questões nos próximos dois anos será determinante para o futuro da política, mas também do próprio desenvolvimento dos grandes centros urbanos. É, portanto, um bom momento para pressionar por mudanças estruturantes que possam ter impacto duradouro nesta área.
Por Marianna Araujo (Diretora de comunicação e inovação do Instituto Fogo Cruzado)
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