Pesquisa desmistifica estereótipos acerca do comportamento canino, apontando um caminho alternativo para compreender seu funcionamento
![]() |
“Na compreensão humana, isso não existe: se um cachorro machuca outro, ‘esse cachorro tem que estar na focinheira, o dono tem que saber controlar’”, comenta o pesquisador – Foto: Imagem de Thomas / Pixabay |
Esta concepção não abrange a diversidade de interações que existem: transformar cães em seres utilitários, seja para lazer, defesa ou companhia é uma prática que data do período Paleolítico, iniciado há mais de 35 mil anos. Deste ponto parte o ensaio de Flávio Ayrosa, biólogo e mestre em Psicologia Experimental pelo Instituto de Psicologia (IP) da USP. Com o apoio do Laboratório de Etologia, Desenvolvimento e Interação Social (Ledis), o pesquisador reinterpretou paradigmas acerca do comportamento agressivo de cães, cujas individualidades são muitas vezes ignoradas.
Flávio explica que a agressividade foi escolhida como objeto de estudo pois tem relevância social, política e econômica. “O que faz a pessoa adotar versus comprar, as políticas públicas em relação aos cães, como acidentes refletem na opinião pública”, exemplifica o autor. Ele comenta que, para além do valor afetivo dos pets, a agressividade ainda é um tabu na sociedade. “Se um cachorro morde, todos pensam: ‘essa raça não pode, é um perigo’. Mas o que, nessa situação, é o perigo? Por que isso aconteceu? O cachorro é o único culpado? Existe uma agressividade inerente?”, questiona.
Reducionismo animal
Segundo o cientista, seu objetivo é enfrentar o determinismo a respeito do comportamento animal, criticando a dicotomia genética-aprendizado difundida na literatura e no senso comum. A chamada Síntese Moderna do Conhecimento é uma teoria respaldada pelas preposições de William Bateson, “Pai da Genética”, que oficializou o gene como suprassumo da evolução.
![]() |
O escopo do trabalho é entender o desenvolvimento do cão, com foco na interação intra e interespecífica – Foto: Julio Bazanini/USP Imagens |
A hipótese primordial de Flávio é a Teoria dos Sistemas em Desenvolvimento, de acordo com a qual diversos fatores são igualmente influentes na agressividade canina. “Os sistemas buscam quebrar essa dicotomia, trazendo uma abordagem mais interacionista do desenvolvimento”, explica o pesquisador. Quatro conjuntos são influentes na convivência do animal com o mundo ao seu redor: a genética, a epigenética, a simbologia e o ambiente. Esse “cosmos” particular do cão é chamado de Umwelt (ambiente, em alemão), e engloba suas diversas formas de percepção, ação e reação, mesmo durante emoções negativas.
![]() |
O animal está sempre moldando e sendo moldado por seu ambiente circundante, e diversos preconceitos ligados às raças puras não se comprovam cientificamente – Foto: Imagem de liaoxh1981 / Pixabay |
A teoria traz uma abordagem anti-produtivista, ao contrário da ciência aplicada para técnicas de reprodução e adestramento. O pesquisador orienta que a inclusão de cães não puros no campo de pesquisa é crucial para investigar o desenvolvimento sem o viés da raça.
“Enquanto a ciência tradicional quer resultados universais para as raças, pensamos que existem tendências genéticas, mas em nenhum momento isso permite que você construa um cachorro. O seu cachorro se constrói, e os organismos se desenvolvem”
Ele explica que, de acordo com a etologia moderna, uma característica física não se desdobra apenas no quesito fisiológico, mas no Umwelt do animal. O comprimento do crânio influencia em diferenças na visão e respiração, a altura permite que o cão acesse ou não certos espaços, e o peso influencia no metabolismo energético e na disposição. Consequentemente, a forma como os humanos tratam os cães se modifica: pesquisas alternativas revelam que cães de grande porte são mais reprimidos verbal e fisicamente, mais treinados para responder a comandos e se comportar, enquanto donos de raças pequenas tendem a desvalorizar comportamentos agressivos. “Um cachorro pequeno latindo ou abocanhando o ar é apenas chato. Um cachorro grande latindo, puxando ou abocanhando algo é assustador”, evidencia o pesquisador.
Flávio destaca que os animais naturalmente regulam seus conflitos através de comportamentos agonísticos, que abrangem agressão, ameaça e submissão ou dominação. A agressividade é um componente de manutenção social para os cães, que existe como forma de comunicação e assertividade sobre o espaço ou sobre outro ser vivo — e uma mordida nem sempre tem o intuito de ferir, mas de alertar ou demonstrar um sentimento negativo.
Outras interpretações
Sociedades ao redor do mundo estabelecem diferentes tipos de relação com os animais. Comunidades indígenas, por exemplo, coexistem com matilhas, mas entendem culturalmente que o cão é um ser com instintos e necessidades que vão muito além do controle humano. “Conversar com os Mbya-Guarani de São Paulo foi uma oportunidade incrível”, relata Flávio. “No laboratório, estudamos as diferenças culturais entre sociedades urbanas e sociedades tradicionais ameríndias […], e podemos aprender muito com eles sobre a auto-regulação canina.”
Nessa comunidade, os cães vivem amplamente irrestritos e podem ou não pertencer a um único cuidador, dependendo dele apenas para necessidades básicas. Seus relacionamentos, positivos ou negativos, recebem o mínimo possível de interferência humana. O pesquisador contrapõe essa realidade com o tratamento nas sociedades urbanas ocidentais. “As pessoas às vezes tratam gatos e os cachorros como bonecos”, cita, normalizando práticas artificiais como utilizar roupas, acessórios e carrinhos para passeio.
“Isso revela muito mais sobre as pessoas do que sobre o cão: é uma forma de remoção de autonomia. Não podemos perder de vista que ele ainda anda em quatro patas, explora o mundo pela boca e precisa de suas animalidades”
Mudando hábitos
O cientista destaca que o primeiro passo para construir uma relação harmoniosa com os cães é compreendê-los como seres individuais, e não como um grupo pré-determinado que pode ser selecionado a fim de obter o pet ideal. “Você tem que refletir bem se vai obter um cachorro, porque ele pode sim ter comportamentos que serão um ‘problema’ para a sociedade, e você tem que ter disponibilidade de tempo, disposição e acesso para lidar com ele”, pontua Flávio. À medida em que um comportamento agonístico afeta o ser humano, o mais apropriado é identificar o gatilho da atitude agressiva para se prevenir e proteger pessoas ao seu redor.
O adestramento, por sua vez, pode amenizar a questão, mas promete cumprir um papel utópico e não é uma ciência exata. “Adestradores ainda vendem uma ideia de que o cachorro respeitaria uma hierarquia fixa que viria dos lobos. Isso, cientificamente, não se sustenta: os cachorros não têm hierarquias estáveis, todo dia eles estão se regulando”, aponta Flávio.
Remover um cão de seu cuidador, ou até mesmo forçar sua eutanásia, são soluções simples e econômicas para um problema complexo. “É mais barato se livrar de um problema do que investir tempo e dinheiro para administrá-lo”, pontua Flávio. “O cachorro morder faz parte do repertório comportamental dele, são os desdobramentos do nosso social que entram em embate”, finaliza.
Texto: Gabriela Nangino*
Dois cães felizes em um dia ensolarado na Praça do Relógio da USP
Dois cães felizes em um dia ensolarado na Praça do Relógio da USP
0 Comentários