Dos 943 registros de furto por artigos de primeira necessidade examinados, quase metade — cerca de 43% — tinha preços equivalentes a até 20% do salário mínimo. Nos casos em que o bem furtado valia entre 10% e 20% do mínimo, houve condenação em 57% dos processos, com penas que variam entre quatro meses a seis anos.
Os números fazem parte do “Relatório sobre aplicação do princípio da insignificância no caso de furto de itens alimentícios e de higiene no Rio de Janeiro”, que será lançado na quinta-feira (1º), às 10h, em evento remoto com transmissão pelo Youtube.
O levantamento da Defensoria abrange 4175 registros de ocorrência policial e de processos judicias sobre acusações da prática do crime de furto (art. 155 do Código Penal) iniciados em 2020 e no primeiro semestre de 2021, classificando-os de acordo com o tipo de objeto e o preço a ele atribuído, tendo por base o salário mínimo da época. A maior incidência de casos reunidos foi de furto de metal (fios de cobre, tampas de bueiro, grades etc): 1073 prisões. Em seguida, foram registros relativos à subtração de alimentos, bebidas e artigos de higiene: 943. Os dados têm como fonte as audiências de custódia e os processos judiciais abertos no período nos quais atuaram defensoras e defensores públicos.
“Da análise dos casos de furto que chegaram ao sistema de justiça foi possível perceber que a realidade é muito mais complexa do que o arcabouço jurídico pode prever e tentar normatizar. Muitas das ocorrências ultrapassam o valor previsto na jurisprudência para aplicação do princípio da insignificância, porém não afastam o caráter de subsistência que as envolve. É o caso, por exemplo, de furto de grandes quantidades, como caixas de chocolate, que possivelmente seriam vendidas e o valor auferido utilizado para suprir necessidades básicas”, destaca a diretora de Estudos e Pesquisa da Defensoria, Carolina Haber, na conclusão do relatório.
No texto, Haber ressalta ainda:
“Uma grande dificuldade foi definir o que poderia ser considerado um item utilizado para suprir necessidades básicas de uma pessoa em situação de vulnerabilidade. O caminho escolhido foi associar a aplicação do princípio da insignificância ao furto denominado famélico, porém foram encontrados vários casos de outros itens, como, por exemplo, botijão de gás ou itens de vestuário, como chinelos, que poderiam se enquadrar nesse perfil, ainda que indiretamente. Sem falar no caso do furto de cabos de energia e de internet, de materiais como o cobre, que acabam sendo revendidos em ferros velhos por valores irrisórios, que também serão revertidos em itens de sobrevivência”.
Reincidência e vulnerabilidade
A coordenadora de Defesa Criminal, Lucia Helena Oliveira, explica:
— Com acerto nossa jurisprudência vem reconhecendo em diversos casos o princípio da insignificância, que, em última análise, acaba por entender que o direito penal deve ser aplicado para condutas graves. É necessário que, haja expressividade na lesão ao bem jurídico protegido. No entanto, em termos práticos, ainda encontramos muitas dificuldades para que haja o reconhecimento do princípio da insignificância, ainda, que estejamos diante de produtos de necessidade básica. Precisamos que, haja uma mudança legislativa para que este princípio possa estar expressamente previsto em nossa lei penal, evitando, deste modo, a insegurança jurídica, em razão de decisões jurídicas diferenciadas. Em verdade, a previsão legal também evitaria que as questões relativas a este princípio fossem levadas até as Cortes Superiores, contribuindo com a diminuição do volume excessivo de processos em tramitação.
A legislação não prevê expressamente o tratamento a ser dado a furto de itens para necessidades pessoais, mas a Justiça costuma considerar, para aplicação do princípio da insignificância, a mínima ofensividade; nenhuma periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica provocada. No Código Penal há previsão de furto privilegiado, que consiste na possibilidade de diminuição da pena, de um a dois terços, quando a pessoa que cometeu o crime for primária e a coisa furtada, de pequeno valor.
Ou, como observa o relatório: “Na análise dos casos que foram classificados como alimentos/bebidas/itens de higiene no valor de até 20% do salário mínimo é possível notar que o maior empecilho para o reconhecimento do princípio da insignificância é a reincidência ou, até mesmo, anotações anteriores na folha de antecedentes, ainda que não tornem o/a acusado/a reincidente. Contraditoriamente, as pessoas que estão em situação de vulnerabilidade são as que mais tem chance de cometer furtos de forma reiterada, uma vez que as necessidades são diárias e provavelmente aparecem com frequência”.
No tocante aos registros em que os valores envolvidos eram de até 10% do salário mínimo, a maioria das decisões judiciais (55%) “reconheceu e aplicou o princípio da insignificância (65 de 118). Em 67,8% dos casos (80 de 118), a decisão beneficia de alguma forma o/a acusado/a, verificando-se que, nas situações em houve condenação, o maior impedimento para o reconhecimento da insignificância foi o fato do/a acusado/a ter anotações criminais ou ser reincidente.
O relatório menciona ainda exemplo em que o pouco valor do artigo furtado não foi levado em conta na sentença judicial e, portanto, ignorando o “princípio da insignificância. “Em um caso, o/a juiz/a disse que “a quantia de R$83,40 (oitenta e três reais e quarenta centavos) não pode ser considerada ínfima, apta a gerar a aplicação do referido princípio, principalmente em um país onde milhares de pessoas sobrevivem com menos de R$100,00 (cem reais) recebidos a título de benefícios sociais”, mesmo não havendo reiteração criminosa.
— O princípio da insignificância é instrumento de justiça, na medida em que evita a punição de condutas que possuem mínima lesividade e relevância, principalmente pequenos furtos de itens de alimentação e higiene voltados à subsistência de famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade e insegurança alimentar, agravadas pela pandemia de COVID-19. É necessário que haja sensibilidade para a questão social por parte de todo o sistema de Justiça na aplicação deste importante princípio, inclusive tendo em vista que, conforme concluiu a pesquisa, os dados demonstram que ‘a realidade é muito mais complexa do que o arcabouço jurídico pode prever e tentar normatizar — assinala a subcoordenadora de Defesa Criminal, Isabel Schprejer.
Acesse aqui a íntegra da pesquisa bit.ly/42gI0Vg
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