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Violência contra a mulher bate recordes e expõe falhas na proteção estatal às vésperas de 2026

Violência contra a mulher bate recordes e expõe falhas na proteção estatal às vésperas de 2026

Decisões políticas, falhas na proteção e silêncio social expõe um paradoxo que atravessa lares, tribunais e parlamentos
Violência contra a mulher bate recordes e expõe falhas na proteção estatal às vésperas de 2026
Foto profissional — pexels.com
O Brasil registrou, em 2024, 1.492 feminicídios, o maior número desde que o crime foi tipificado, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O índice representa uma média de quatro mulheres assassinadas por dia. Na última década, quase 12 mil brasileiras morreram por razões de gênero, em grande parte dentro de casa ou por mãos de parceiros e ex-parceiros. Em paralelo, 3,7 milhões de mulheres sofreram violência doméstica ou familiar em 2025, conforme a Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher do DataSenado. Especialistas alertam para um paradoxo recorrente: enquanto casos fatais geram comoção pública, agressões anteriores seguem invisíveis, naturalizadas ou arquivadas.

Um episódio recente ajudou a evidenciar esse cenário. A influenciadora e professora Cíntia Chagas denunciou o ex-marido, o deputado estadual Lucas Bove (PL), por agressões físicas e verbais. A Assembleia Legislativa de São Paulo chegou a abrir procedimento no Conselho de Ética, mas o pedido de cassação foi arquivado em 26 de agosto de 2025, por seis votos a um. Para entidades de proteção à mulher, a decisão indica barreiras institucionais à responsabilização de agressores mesmo diante de denúncias com ampla repercussão.

Fora dos casos midiáticos, os números mostram falhas na proteção. 18,3 por cento das Medidas Protetivas de Urgência foram descumpridas em 2024, mais de 101 mil ocorrências. Em diferentes estados, reportagens relatam assassinatos de mulheres mesmo após concessão de medidas protetivas, com registros de vítimas mortas a tiros, esfaqueadas ou queimadas pelo agressor. A distância entre previsão legal e proteção efetiva permanece como um dos principais desafios da política pública.

Segundo a advogada Michele Gheno Pacheco, que atua em Direito de Família, a escalada da violência costuma ser gradual. O país costuma reagir com maior intensidade às consequências extremas da violência, enquanto sinais anteriores presentes em boletins de ocorrência, audiências de família e disputas relacionadas à guarda, convivência e pensão permanecem subvalorizados. O feminicídio, em regra, é precedido por um histórico prolongado de condutas abusivas que não recebem resposta institucional adequada.

O Anuário aponta também recorde no número de estupros e estupros de vulnerável: 83.988 registros em 2023, o equivalente a um caso a cada seis minutos. 88 por cento das vítimas são mulheres, com predominância de meninas abaixo de 14 anos. O DataSenado indica ainda que grande parte das vítimas deixa de denunciar agressões devido ao medo, à dependência econômica e à descrença no sistema. “A compreensão de que conflitos conjugais pertencem exclusivamente à esfera privada ainda se reflete em decisões, despachos e práticas institucionais informais, contribuindo para a percepção de impunidade e para a dificuldade de intervenção precoce”, avalia Michele.

A atuação do Judiciário também é apontada como fator que pode interferir no risco. Para Michele, o Direito de Família pode desempenhar papel relevante na prevenção, já que muitas agressões surgem primeiro em casos civis. “O Direito de Família permite acesso privilegiado às dinâmicas internas das relações familiares. É nesse contexto que surgem registros de ameaças, mensagens de controle, comportamentos obsessivos e tentativas de instrumentalização dos filhos. Quando esses elementos não são tratados como indicadores de risco, o sistema perde uma oportunidade relevante de interromper ciclos de violência”, afirma.

Nos últimos anos, o Congresso aprovou medidas para tentar conter o avanço da violência. A Lei 14.994/2024 aumentou a pena máxima para feminicídio para até 40 anos e endureceu punições por descumprimento de medidas protetivas. O Conselho Nacional de Justiça também lançou metas para acelerar julgamentos e ampliar equipes especializadas. A percepção de especialistas, porém, é que a implementação ainda avança de forma lenta.

Michele defende que a integração entre áreas jurídicas pode evitar agravamentos. Entre as propostas, ela cita a unificação de informações entre varas de família e violência doméstica, exigência de laudos psicossociais em ações com histórico de agressão e protocolos específicos para casos de risco alto. “Hoje, a mulher precisa repetir a história em diferentes portas do sistema. Em cada uma, alguém decide se acredita ou não. O resultado costuma ser atraso, revitimização e decisões desconectadas entre si”, diz.

Em famílias de maior poder aquisitivo, a violência tende a se manifestar por meios financeiros, emocionais ou processuais. A imagem pública do agressor como empresário, profissional reconhecido ou figura socialmente respeitada dificulta o reconhecimento das dinâmicas abusivas e, não raramente, essa hesitação também se reflete na atuação institucional.

A pesquisa mais recente do DataSenado aponta que quase 60 por cento das vítimas presenciaram violência nos seis meses anteriores à entrevista, muitas vezes na presença de crianças. Apenas parte registrou ocorrência. “O silêncio não nasce da falta de coragem. Em grande parte, nasce da percepção de que o sistema não entrega segurança concreta. A vítima calcula o risco de denunciar e teme um retorno ainda mais violento do agressor”, analisa.

Para Michele, a discrepância entre comoção pública e resposta estatal permanece como centro da discussão. “O Brasil produz leis para homenagear mulheres mortas e, ao mesmo tempo, tolera a humilhação cotidiana de mulheres vivas. O Direito de Família pode ajudar a alterar esse cenário, desde que enxergue a violência antes do obituário”, conclui.

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