Rádio Acesa FM VR: "Nossa vida política faz parte da evolução biológica", diz neurocientista português

sexta-feira, 28 de junho de 2013

"Nossa vida política faz parte da evolução biológica", diz neurocientista português

O neurocientista português António Damásio, que desembarcou no Brasil em meio à onda de protestos, vê algum paralelo entre os acontecimentos de junho de 2013 e a abordagem com que ele próprio estuda a mente. Damásio, que estuda o papel da emoção na racionalidade, concorda que o envolvimento emocional das pessoas com as reivindicações ajudou os protestos tomarem grandes proporções ao mesmo tempo em que perdem um pouco da objetividade.

Uma pergunta que todos me fazem hoje é se isso poderia fazer mal para os muito jovens. É claro que isso não vai fazer mal nenhum para mim nem para si. Mas, para alguém que está em tempo formativo --crianças, por exemplo--, é possível que tenha mais riscos do que para nós. E vai ter, ao mesmo tempo, coisas benéficas e potenciais problemas. As coisas benéficas são óbvias. Vai haver uma aceleração de respostas cognitivas que pode trazer benefícios em matéria de rapidez de raciocínio, por exemplo. Vai haver uma maior disseminação de informação, que, caso seja possível trabalhar bem com essa informação, significará mais conhecimento. E, com mais conhecimento há a possibilidade de se tomar decisões mais acertadas.

Mas, ao mesmo tempo, isso pode dividir de tal maneira o espaço intelectual de modo que, paradoxalmente, não haja tempo para fazer as boas e acertadas decisões. Portanto, tudo isso é matéria de investigação. Não é possível dizer, a priori, que isto vai ser muito bom ou que vai ser muito mal. É possível que seja um pouco de uma coisa e um pouco da outra, e é possível que no fim não tenha efeito de qualquer espécie.

Como o sr. enxerga a recente polêmica em torno da elaboração da quinta edição do DSM, o manual de diagnósticos da psiquiatria. O manual ainda não conseguiu traduzir as descobertas mais recentes da neurociência em aplicações clínicas, e os críticos falam que isso é sinal de uma crise na psiquiatria. O sr. concorda?

Eu não sou um psiquiatra, primariamente, mas falar em crise é uma coisa exagerada. O que se pode discutir é se ter um manual de diagnósticos possíveis é a coisa mais prática e inteligente. Prático parece ser, mas eu não tenho grande gosto por esses manuais, e parece-me que há muitas coisas da realidade que escapam a esses manuais porque é extremamente difícil codificar doenças e síndromes. 

Há certas coisas em que é fácil, com um grupo muito típico de manifestações, mas em grande parte dos casos as manifestações variam um tanto. A capacidade humana de variação é tal que tentar fazer um pigeonholing [uma rotulagem] é extremamente difícil, e geralmente não resulta bem. Nós somos todos extremamente parecidos nas nossas linhas mestras, mas ao mesmo tempo extremamente individuais, e é por isso que é muito arriscado fazer esses diagnósticos como se fossem possíveis dentro de uma grande precisão, quando muitas vezes não o são.

Mas acho que minha opinião conta muito pouco. Não tem nada a ver com o valor profissional [do manual]. É possível que isso tenha um imenso valor para os profissionais de psiquiatria que têm que se entender com entidades de saúde, por exemplo, e resolver problemas como reembolsos para tratamentos de doenças. Esses são todos problemas com os quais eu, como cientista, não tenho grande relação, mas acredito que sejam problemas reais.

Os trabalhos que o sr. tem feito nos últimos anos estão dando uma direção um pouco diferente para a neurociência, tirando um pouco o foco do córtex, a parte externa do cérebro, e mostrando o papel de estruturas tidas como mais primitivas, como o tronco cerebral, nas funções cognitivas humanas avançadas. Essas descobertas resultaram em alguma aplicação clínica, ou poderão resultar?

Acho que pode haver repercussões fortes no lado clínico, mas, francamente, aquilo que me interessa principalmente é ter, antes de mais, uma repercussão na compreensão daquilo que é um ser humano. Se nós cremos ter uma visão de o que é um ser humano do ponto de vista biológico, há que verificar que aquilo que sabemos de biologia e de neurobiologia ajuda a explicar o que é um ser humano tal como os seres humanos hoje em dia vivem. Mas não é a explicação completa.

Há explicações que têm a ver com a inserção social do ser humano. Os seres humanos são resultado de uma biologia antiga, que têm se desenvolvido ao longo de milênios, e de uma sociedade em que vivem. É ela em grande parte o resultado da própria biologia, porque a sociedade foi construída pela biologia. Mas, uma vez que a sociedade têm uma determinada estrutura, essa estrutura vai poder interagir com a biologia, de modo que aquilo que somos não pode ser explicado de forma alguma, nem pela sociedade exclusivamente, com seus aspectos culturais e de civilização, nem pela biologia exclusivamente. Tenho desgosto por explicações de seres humanos que sejam exclusivamente biológicas ou exclusivamente culturais. Tanto uma quanto outra perdem a visão daquilo que é uma verdade possível. A verdade possível, quanto a mim, inclui aspectos biológicos e inclui aspectos socioculturais. Esta é a primeira coisa.

E, em relação à sua pergunta sobre o córtex cerebral, a história da neurobiologia tem sido mesmo uma história que dá valor especial ao córtex cerebral e muito pouco valor ao resto da estrutura nervosa. Isso é bastante compreensível por várias razões. Primeiro, é óbvio que o córtex cerebral é especialmente desenvolvido no ser humano. Portanto, faz sentido dar atenção ao córtex cerebral. Não tenho problema nenhum com isso. E algo que é menos óbvio, mas é verdade, é que o córtex cerebral é mais fácil de estudar do que tudo o mais no sistema nervoso, porque é maior. As coisas que são maiores e que estão mais à vista são as coisas que se estudam primeiro.

É um paradoxo que a compreensão das bases neurais de um comportamento completo tenha que começar pela linguagem. É espantoso. Como é que se começou a compreender aquilo que é o cérebro humano por um dos aspectos mais complicados da mente, que é exatamente o aspecto codificado da linguagem que nós estamos agora a utilizar. Mas foi aí que se começou. Por quê? Porque houve lesões neurais em regiões enormes do córtex em que houve uma área de destruição, e essa área de destruição pode ser correlacionada com a perda da fala ou com a perda do uso linguístico da gramática de uma forma própria, como no estudo da afasia. Mas o começo partiu daí por acaso, por uma combinação de acaso, boa sorte e o fato de que o defeito era de tal maneira evidente e visível que não poderia escapar à observação de uma pessoa atenta.

Foi aí que começamos, mas não faz sentido nenhum, porque há coisas muito mais profundas do que a linguagem que só agora que se estão a compreender. Por exemplo, é infinitamente complexo tentar compreender agora como funcionam as emoções, como elas se repercutem na organização social, como os sentimentos das emoções estão estruturados. Embora isso seja muito mais antigo do ponto de vista evolucional, só agora estamos a perceber. Por quê? Porque grande parte desses fenômenos dependem de estruturas de pequeno porte, como por exemplo, estruturas do tronco cerebral, do bulbo raquidiano, do mesencéfalo. Essas estruturas são extremamente difíceis de se analisar. Algumas delas são macroscópicas, mas, no fundo a estrutura principal é microscópica. Elas são muito difíceis de compreender em matéria de rede, de interação. É muito difícil apanhá-las do ponto de vista de neuroimagem, enquanto com a neuroimagem nós podemos ver coisas no córtex lindamente hoje em dia com ressonância magnética, com tomografia por emissão de pósitrons [PET scan].

Estamos conseguindo apanhar coisas no tronco cerebral agora, mas, tecnicamente, é uma proeza. Portanto, vai haver um processo muito mais lento para se compreender aquilo que está a passar nessas estruturas, o que não quer dizer que essas estruturas não estejam fazendo coisas absolutamente vitais para aquilo que é o ser humano, tais como emoções. 

Eu acho que só se pode compreender o que é um ser humano quando se tem em vista a biologia e a cultura em que esse ser humano está inserido. Não se pode compreender o que é o comportamento humano neurobiologicamente sem se perceber as ligações entre as estruturas mais antigas do cérebro, que não são corticais, e as estruturas do córtex cerebral que estão interligadas com elas.

É evidente que esta conversa e as ideias que estão a ser traduzidas por ela não pode ser tida por símios altamente complexos. Chimpanzés não poderiam ter esta conversa, nem com linguagem de sinais nem com nenhuma outra maneira de expressão. Por quê? Porque apesar de terem um córtex cerebral muito grande e em muitos aspectos bem parecido com o nosso, eles não têm as redes neurais organizadas da forma que nós as temos em suas ligações com o tronco cerebral. Então, não é só porque o córtex cerebral é grande, pois o deles também é grande. 

E não é só por causa do tronco cerebral, pois eles também têm tronco cerebral. A forma como as redes funcionam e a forma como elas estão integradas é que vão permitir a estruturação daquilo que é uma mente humana e que vão permitir, através da evolução, estruturar uma sociedade e uma cultura, que por sua vez intervêm no cérebro humano, que por sua vez faz acontecer alguma coisa que não aconteceu em outras sociedades de outros animais.

Alguns anos atrás, suas ideias em neurobiologia vinham sendo descritas como não convencionais, mas o sr. já tem conseguido alguma evidência experimental para defendê-las. Atribuir um papel maior das estruturas subcorticais em funções cognitivas avançadas é uma dessas ideias. Há estudos de outros grupos confirmando isso também? O sr. acha que essa sua hipótese pode deixar de ser consideradas subversiva dentro da neurociência?

Bom, ela pode ter sido subversiva, mas já não é. Há várias coisas que podem acontecer com as ideias científicas, com os resultados e suas hipóteses. Ou elas têm dados que as apoiam, e nesse caso elas vingam e deixam de ser subversivas, passam a ser status-quo, ou então não há evidência nenhuma, e elas morrem pelo caminho ou ficam adormecidas até regressarem uma geração mais tarde.

Há algumas coisas em que eu tenho trabalhado, como a hipótese dos marcadores somáticos, para as quais há amplos dados de que têm mérito. Pode haver detratores, mas elas têm mérito, têm funcionamento e têm poder explicativo. 

Há um estudo do meu laboratório que saiu neste ano na revista "Nature Reviews Neuroscience" em que falo sobre a base dos sentimentos do ponto de vista neuronal, em relação ao tronco cerebral e em relação até ao nível abaixo dessas estruturas. 

Julgo que tem uma boa projeção, e há muitas pessoas que estão interessadas neste trabalho e estão a prosseguir com investigações. Algumas das quais evidentemente ainda não saíram, porque ainda não estão completas. Julgo que tem um certo eco entre várias pessoas, mas é cedo demais para dizer. Se tivermos uma nova entrevista daqui a três anos, a essa altura sua pergunta vai ter uma resposta mais clara.

Há muitos neurocientistas entusiasmados agora em tecnologias como a ressonância magnética por difusão, e já se fala em mapear por completo o "conectoma" --a expressão criada para descrever a totalidade de sinapses, as conexões entre os neurônios. O sr. acha que essas novas tecnologias vão conseguir enxergar essas características humanas únicas nas estruturas cerebrais subcorticais que o sr. menciona?

Acho que há enormes possibilidades de que isso aconteça. Mas há um certo aspecto de divulgação desses termos porque eles captam o espírito da época. Mapeamento é uma palavra que está na moda. A ideia de que se possa mapear algo deixa as pessoas muito contentes, porque se há um mapa a gente sabe onde é que está e para onde é que vai --mas muitas vezes não sabe. "Conectoma" também é uma coisa muito sugestiva. Com conexões, a gente percebe que aquilo que somos mentalmente e comportamentalmente tem a ver com a forma como há conexões neuronais. Mas [o uso desses termos] é quase como um aspecto publicitário, mais do que a realidade. É importante ver isso com certo cuidado.


É evidente que trabalhos de neuroimagem, em geral, são importantes. Técnicas de difusão ajudam muito, mas é preciso uma grande elaboração para chegar ao ponto em que possam dar resultados definitivos. Em nosso centro de neuroimagem estamos a trabalhar com essas técnicas e as usamos constantemente. Há coisas magníficas, mas há também enormes lacunas que estão por resolver.
Quais são as principais questões que o sr. está investigando em laboratório hoje?

A questão que mais me preocupa é a seguinte.

Hoje em dia, conseguimos compreender muito bem como é que as emoções funcionam. Há uma grande clarificação desse problema, que há vinte anos era uma incógnita enorme. Há emoções diversas: as simples, as complexas, as emoções sociais, as básicas. É relativamente claro como tudo isso funciona, e sabe-se quais são as partes do cérebro envolvidas.

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