Há um ditado popular que diz que o Brasil não é para amadores. Em nenhum outro campo essa máxima faz tanto sentido quanto na segurança pública. Enquanto o governo federal publica um decreto tentando conter a letalidade policial, as armas de fogo – instrumento de mais de 70% dos homicídios no país – ficam de fora da lista do “imposto do pecado”. Um paradoxo que resume bem a complexidade do debate sobre segurança no país.
O recém-publicado Decreto 12.341/2024 estabelece diretrizes nacionais para o uso da força policial. Uma medida necessária e urgente, embora tímida, especialmente quando olhamos os números: em 2024, apenas nas quatro regiões metropolitanas monitoradas pelo Fogo Cruzado, Salvador, Recife, Rio de Janeiro e Belém, registramos 6.768 tiroteios — uma média assustadora de 18 por dia. Mas o dado que mais chama atenção é que 29% desses episódios envolveram forças policiais.
São cinco pessoas baleadas por dia em ações policiais, como a que feriu Juliana Rangel, atingida por agentes da PRF na véspera do último Natal, dia seguinte à publicação do decreto. O caso de Juliana não é isolado. Nossa experiência com dados mostra que a violência policial não se resume aos casos em que as vítimas morrem. Cada disparo, cada operação mal planejada, cada abordagem truculenta deixa marcas profundas nas comunidades. São traumas que os números nem sempre conseguem captar, mas que perpetuam um ciclo vicioso de violência.
A medida determina, entre outros pontos, que armas de fogo não podem ser utilizadas contra pessoas desarmadas em fuga ou contra veículos que desrespeitam bloqueios policiais. Parece óbvio, não? Mas a realidade nos mostra que não é.
E aqui vale um destaque importante: o Fogo Cruzado é a única organização que realiza o mapeamento sistemático de disparos de arma de fogo em ações policiais, incluindo um indicador específico para perseguições policiais. Em 2024, registramos 142 pessoas baleadas durante perseguições, que envolviam a polícia — casos que muitas vezes sequer entram nas estatísticas oficiais. São dados que mostram a urgência de regras claras para o uso da força.
Enquanto o decreto tenta estabelecer limites para o uso da força, a decisão de não incluir armas de fogo na lista do Imposto Seletivo, conhecido como “imposto do pecado”, caminha na direção oposta. Em um cenário onde carros, bebidas e cigarros terão aumento significativo nos preços, as armas de fogo seguirão mais acessíveis. É como se o governo dissesse: “carro é artigo para poucos, arma não”.
A reação de alguns governadores ao decreto também merece atenção. Chamam de “chantagem” o fato do governo federal condicionar o repasse de recursos à adequação aos padrões internacionais de uso da força. Na administração pública, condicionar repasses ao cumprimento de normas é prática corriqueira e necessária. Afinal, que gestor responsável continuaria enviando recursos para práticas que violam acordos?
O caso da Bahia é emblemático dessa contradição. Enquanto o governo estadual celebra uma suposta redução nos números de letalidade violenta, convenientemente exclui dessa conta as mortes em ações e operações policiais. Uma matemática criativa que tenta mascarar um dado alarmante: a polícia baiana é a que mais mata no Brasil. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública - Ministério da Justiça (Sinesp — MJ), somente em 2024 foram 1.557 mortes por intervenção policial. É como fazer regime contando só as calorias que nos interessam — o resultado final não reflete a realidade.
São muitos aspectos de um mesmo tema, segurança pública, e eles parecem desconectados, certo? Governadores, governo federal, decretos, impostos, afinal como tudo isso se relaciona? Na verdade, essa sensação de falta de alinhamento e direção é o que melhor resume o cenário. Não temos uma política clara, diretrizes nacionais, articulação de governos para lidar com um dos principais problemas nacionais: o altíssimo número de pessoas mortas por armas de fogo todos os anos.
O decreto é um primeiro passo importante, mas faltam critérios claros para sua implementação e monitoramento. Como será avaliada a adesão dos estados? Quais serão os indicadores de sucesso? São perguntas que precisam ser respondidas para que a mudança não fique apenas no papel. Mas é importante também lembrar que uma política de segurança efetiva precisa ser ampla e ter diretrizes e objetivos claros. Isso é o que a população espera há algumas décadas.
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