(Foto: Montagem/Olhar Digital)
Dois anos depois, falta de clareza do Marco Civil causa atrito com o WhatsApp
Renato Santino
03/03/2016
Brasil
Facebook
Internet
O Marco Civil já está em vigor no Brasil há quase dois anos.
Neste período, pudemos observar que, na prática, pouca coisa mudou. A
legislação não se tornou arma ativa de censura, como previam os
catastrofistas, nem se tornou a arma para garantir a liberdade na
internet, como afirmavam os apoiadores.
A lei é muito nova, e muitos dos itens mais importantes ainda carecem
de regulamentação. A jurisprudência, por sua vez, ainda é confusa,
causando aberrações. O exemplo máximo é a Justiça barrar o WhatsApp no
Brasil com base no Marco Civil, enquanto o Comitê Gestor da Internet
afirma que a lei proíbe este tipo de bloqueio.
Vamos analisar alguns dos pontos que continuam pouco claros mesmo quase depois de dois anos.
WhatsApp contra a Justiça Brasileira
Essa bagunça está longe de chegar a um fim, porque a interpretação da
lei ainda é dúbia. O artigo 12 do Marco Civil fala claramente em
sanções que incluem advertência, multa, suspensão e proibição de serviço
caso provedores de conexão (empresas como NET, Vivo, etc) ou aplicações
de internet (Facebook, WhatsApp e outros serviços online) não colaborem
com a justiça. De fato, quando o WhatsApp foi bloqueado, a
justificativa era exatamente o Marco Civil.
O problema é que o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), um
dos órgãos responsáveis pela proposta do Marco Civil, diz que a lei não
serve como base para ações como esta, alegando que “os agentes que
integram o complexo ecossistema da Internet somente serão
responsabilizados nos limites das atividades que desempenham”, além de
que o Artigo 18 do Marco Civil diz que o provedor de serviços não pode
ser responsabilizado pelo conteúdo gerado por terceiros.
Querendo ou não, fica uma dúvida no ar. O Marco Civil pode ou não
servir como base legal para bloquear um serviço no Brasil se ele não
colaborar com investigações policiais? Esta é uma das questões que
precisam ficar mais claras no futuro, para criar uma jurisprudência que
não seja punitiva para as empresas que não tenham culpa, se elas
realmente não tiverem culpa.
Já sobre prender um executivo de uma empresa: isso não está previsto
em nenhum lugar do Marco Civil, e parece mais uma medida arbitrária da
Justiça brasileira.
Sobre a responsabilidade do Facebook e do WhatsApp neste caso, é uma situação bastante complicada que remete
à situação atual da Apple contra o FBI nos Estados Unidos.
Os casos correm em segredo de justiça, mas tudo indica que a confusão é
a mesma: o governo pede acesso a dados criptografados com um fim
legítimo (nos EUA a investigação em caso de terrorismo; no Brasil o
tráfico de drogas), aos quais a empresa (nos EUA a Apple; no Brasil o
WhatsApp) não tem acesso sem criar uma brecha permanente em sua
segurança, o que também abre espaço para que a ciberespionagem e o
cibercrime atinjam toda a sua base de usuários.
Diante deste impasse, na falta de uma jurisprudência e de uma
regulamentação mais clara, não seria surpresa se o bloqueio do WhatsApp
voltasse a se repetir, porque, apesar da confusão, uma coisa é muito
explícita: todos os casos de coletas de dados e remoção de conteúdo
precisam, necessariamente, passar pela Justiça, exceto em casos de
pedofilia ou pornografia de vingança, em que o provedor de serviços é
obrigado a excluir o material imediatamente, assim que solicitado pelas
vítimas. E a Justiça vai acabar caindo sempre na mesma barreira que
impede a colaboração com o WhatsApp.
A rede ainda não é neutra
Prevista na primeira
versão da lei, a neutralidade da rede é um dos pontos fundamentais do
Marco Civil, e ainda não entrou em prática. A proposta é que não pode
haver discriminação de nenhum tipo de dados que trafegam pela internet, o
que proibiria práticas como o traffic shaping, no qual um provedor de
internet poderia favorecer um serviço, com um tráfego mais rápido de
dados, em detrimento de outro, que poderia ser prejudicado com
velocidades pioradas.
Um exemplo fictício: como se o Facebook fechasse um acordo com a NET
ou a Vivo para que seu site sempre fosse aberto com a velocidade máxima
para os clientes da empresa, ao mesmo tempo que usuários do Twitter
sofreriam com uma velocidade ruim de acesso. Ou se a NET e Vivo
cobrassem da Netflix para que seus clientes pudessem usufruir da
velocidade máxima de internet no streaming. O exemplo é uma forma
explícita de traffic shaping, mas normalmente ela não é tão óbvia. Nos
casos mais comuns, o internauta se vê impedido de fazer seus downloads
ou assistir a vídeos por streaming (Netflix, YouTube, Twitch...) pela
lentidão da internet, enquanto em outros serviços as velocidades são
normais, e não é informado do que está acontecendo.
O zero-rating é outra prática que fere o princípio básico da
neutralidade da rede, trazendo o outro lado da moeda. Desta vez, o
consumidor acaba ganhando acesso a serviços online sem precisar usar seu
pacote dados. Apesar do benefício óbvio ao consumidor final, que não
precisa pagar pela internet para usar determinado serviço, isso é visto
pelos defensores da neutralidade da rede como uma prática que fere a
livre concorrência, já que beneficia as grandes empresas que podem
“patrocinar” os dados dos usuários, impedindo que empresas concorrentes
menores ganhem popularidade, além de instituir diferentes níveis de
internet, de qualquer forma, indo contra o princípio de uma internet
totalmente aberta. É um dos motivos pelo qual o Internet.org, do
Facebook, com sua proposta de internet básica grátis, vem enfrentando
resistência em vários locais do mundo e chegou a ser banido na Índia.
Estes são os problemas mais comuns da neutralidade da rede, mas
nenhum deles está proibido no Brasil, mesmo com o Marco Civil em vigor.
Falta a regulamentação, que determina como a regra será praticada. Isso,
claro, se ela for praticada, porque existe uma brecha que poderia
simplesmente inviabilizar tudo.
Veja bem, o artigo 9º da lei diz o seguinte:
A discriminação ou degradação do tráfego (...) somente poderá decorrer de:
I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e
II - priorização de serviços de emergência.
O que são “requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada de
serviços”? Os provedores de internet podem afirmar que o traffic
shaping é um requisito para prestar seus serviços, por exemplo. Esta é,
no momento, a questão mais polêmica, que pode ser regulamentada com um
novo decreto dentro de pouco tempo. A consulta pública lançada pelo
Ministério da Justiça se encerrou no dia 1º de março, e agora resta
esperar pela decisão.
No geral, nenhuma empresa parece defender o traffic shaping em sua
forma mais bruta abertamente. As operadoras de internet e as empresas
que oferecem serviços online over-the-top (OTT) parecem concordar, no
entanto, com o zero-rating, pedindo para que ele seja expressamente
autorizado no decreto que regulamentará a questão da neutralidade no
Marco Civil, enquanto ativistas pela liberdade online criticam a ideia.
Existem também outras exceções solicitadas por outras empresas. A
Vivo, por exemplo, pede que seja permitido um controle parental, no qual
seria possível para o próprio usuário bloquear determinado conteúdo em
sua residência. Enquanto isso, a Ericsson pede uma exceção para a
Internet das Coisas.
Novos adendos polêmicos?
O que não falta são empresas, associações e até mesmo políticos
querendo criar novos pontos no Marco Civil para benefício próprio.
Recentemente, foi revelado que a MPAA, grupo que representa as empresas
de Hollywood, quer um adendo no Marco Civil que sites de pirataria sejam
bloqueados em território brasileiro, o que não é previsto no texto
atual da lei, que, pelo contrário, garante ao internauta o direito de
acessar todas as informações na rede. Atualmente, o combate à pirataria
é feito com requerimentos aos sites infratores, e não com um bloqueio.
Também há o polêmico projeto de lei nº1.589/2015, proposto pela
deputada Soraya Santos, do PMDB/RJ, que tenta mudar o Marco Civil para
permitir a entrega de dados de usuários de internet sem necessidade de
mandado judicial, quando a requisição partir de “autoridades
competentes”. O mesmo vale para suas comunicações privadas, que poderiam
ser entregues sem o trâmite jurídico em caso de “crimes contra a
honra”. A proposta vaga agilizaria, por exemplo, processos de políticos
que se sintam ofendidos com publicações online, o que não está muito
distante da censura.
Vale observar: os adendos são propostas, e não leis de fato. Eles
precisam ser votados e aprovados na Câmara dos Deputados, passar pelo
Senado e só então serem assinados pela Presidência para, só então,
entrarem em vigor. É possível e provável que eles nunca saiam do papel.