Marco Civil acerta na neutralidade da rede, mas tem defeitos
O texto do projeto de Marco Civil da Internet aprovado pela Câmara em
25 de Março de 2014 tem uma novidade importante: define em lei o que é a
“neutralidade de rede” no Brasil.
Se o Senado aprovar o projeto e
se a presidente da República o sancionar tal como está, as empresas
brasileiras não poderão fazer aqui o que já está sendo uma realidade nos
EUA: um acerto entre um provedor e um site para que um determinado
conteúdo seja acessado mais rapidamente que o do concorrente.
Por exemplo, a Netflix (empresa que transmite vídeos em streaming)
acaba de fazer um acerto
com a Comcast (uma gigante entre os provedores de internet) para ter
seu conteúdo acessado pelos consumidores numa velocidade maior.
Quem
desejar assistir a filmes na web nos EUA poderá escolher os da Netflix,
com alta velocidade, ou os de concorrentes que poderão travar no meio
da exibição. Ou seja, o mercado torna-se desigual e menos competitivo.
O
Marco Civil da Internet impedirá no Brasil que tais acordos sejam
firmados. Os provedores de acesso não poderão vender velocidades
diferentes de acesso com base no tipo de conteúdo veiculado.
O
que fica ainda permitido aos provedores brasileiros é vender diferentes
velocidades de acesso, sem discriminar o conteúdo. Assim, um consumidor
que pagar para ter 10Megas vai acessar qualquer site nessa velocidade. O
que desejar optar por 20Megas pagará um pouco mais para acessar também
todos os sites nessa velocidade. E assim por diante.
Nesse modelo
a ser adotado pelo Brasil, preserva-se a possibilidade de provedores de
internet terem lucro quando oferecem um serviço melhor (mais rápido).
Ou seja, estimula-se investimentos. Mas fica proibida a discriminação de
conteúdo –as empresas entenderam tudo isso e
aprovaram essa abordagem.
Até aí, tudo bem. Mas o texto do Marco Civil da Internet é longo e contém vários pontos obscuros. Eis alguns:
Censura mais acessível
O
artigo 19 e seus parágrafos 3º e 4º permitem que juízes de juizados
especiais, motivados em “interesse da coletividade” (um conceito vago e
impreciso), determinem liminarmente a retirada de conteúdo de um site.
O
que chama a atenção nesse dispositivo é a regra estar presente dentro
de uma legislação específica sobre a internet. A rigor, a legislação
vigente no país hoje já trata desse procedimento. Ao detalhá-lo no Marco
Civil da Internet, o Congresso faz uma promoção ativa das ações que
visem a censurar conteúdo.
O deputado federal Alessandro Molon
(PT-RJ) argumenta que esse artigo e seus parágrafos referem-se apenas a
conteúdo de terceiros que são publicados em determinado site, portal ou
blog. Por essa interpretação, esse artigo e esses parágrafos estariam se
referindo apenas a comentários que as pessoas possam postar a respeito
de algum conteúdo ou notícia. Esse argumento, entretanto, não fica
explícito no texto da lei que já passou pela Câmara e abre uma brecha
para que a regra se estenda a qualquer tipo de conteúdo, inclusive
jornalístico, que poderá ser censurado e retirado do ar.
Hoje já é
possível retirar um determinado conteúdo da internet. Para conseguir
isso, é necessário entrar com uma ação contra o site e/ou o responsável
pela publicação. Ao explicar que esse tipo de medida pode ser feito por
meio de ações em juizados especiais, que dispensam a contratação de
advogados, o Marco Civil funciona praticamente como uma cartilha
convidando os cidadãos a buscarem tal tipo de censura. Fica pavimentado o
caminho, então, para uma enxurrada de ações.
Há um debate hoje
em democracias consolidadas sobre a inconveniência de retirar conteúdo
jornalístico de circulação. Em alguns países o que ocorre é uma multa no
caso de ficar comprovado o dolo contra a parte que se diz atingida. A
censura e eliminação total do conteúdo, entretanto, não é um
procedimento considerado alinhado aos princípios básicos da liberdade de
expressão. No Brasil, como já é possível proibir a circulação de
determinados conteúdos, esse princípio não existe. Agora, o Marco Civil
reforça a possibilidade de censura e eliminação de determinadas
informações na web.
A gênese desse artigo teve alguns atores
importantes. Um deles foram as Organizações Globo, que defenderam
durante o debate a prática “notice and take down”, que significaria uma
regra simples em que portais e sites seriam notificados por alguém que
se sentisse ofendido –e nessa hipótese os próprios portais ou sites
retirariam o conteúdo do ar. Esse tipo de regra foi muito criticada por
organizações da sociedade civil e de defesa da liberdade de expressão
por considerarem que provedores de internet, sites e blogs se tornariam
na prática censores de conteúdo. Prevaleceu então a necessidade de haver
algum procedimento judicial por parte de quem se sentisse ofendido.
Outro
ator relevante nessa disputa foram os políticos, dentro e fora do
Congresso. Eles pressionaram para que o Marco Civil contivesse uma regra
bem clara sobre a censura e a retirada de conteúdo da web.
Eis os trechos da futura lei que tratam do tema (com as partes mais relevantes em
negrito):
Art.
19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a
censura, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser
responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por
terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências
para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo
assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente,
ressalvadas as disposições legais em contrário.
[...]
§ 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na Internet relacionados à honra,
à reputação ou a direitos de personalidade bem como sobre a
indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de
Internet poderão ser apresentadas perante os juizados especiais.
§ 4º O Juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º, poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na Internet,
desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do
autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.
Responsabilização dos provedores
Esse
é um trecho do Marco Civil que representa uma grande vitória dos que
querem responsabilizar os provedores por conteúdos de terceiros –ou
arrumar uma desculpa para que conteúdos sejam derrubados antes de ordem
judicial.
O Marco Civil estipula que haverá no futuro uma lei
sobre “infrações a direitos de autor ou a diretos conexos”. Enquanto
essa lei não existir, fica valendo a “legislação autoral em vigor”.
Ou seja, um blog ou site que está hospedado num portal pode, eventualmente, ser acusado de publicar material sem o devido
direito autoral.
É impossível um grande portal identificar previamente quem está fazendo
isso. Mas pelo que determina o Marco Civil, um determinado provedor
será “solidariamente responsável” com aquele que infringir a lei.
Eis os trechos que tratam disso (com as partes mais relevantes em
negrito):
Art. 19 (…)
§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a diretos conexosdepende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal.
Art. 31. Até a entrada em vigor da lei específica prevista no § 2º do art. 19, a responsabilidade do provedor de aplicações de Internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, quando se tratar de infração a direitos de autor ou a direitos conexos, continuará a ser disciplinada pela legislação autoral em vigor aplicável na data da entrada em vigor desta Lei.
E o que que diz a Lei autoral:
Art. 104: Quem vender,
expuser à venda, ocultar, adquirir, distribuir, tiver em depósito ou
utilizar obra ou fonograma reproduzidos com fraude, com a finalidade de
vender, obter ganho, vantagem, proveito, lucro direto ou indireto, para
si ou para outrem, será solidariamente responsável com o contrafator,
nos termos dos artigos precedentes, respondendo como contrafatores o
importador e o distribuidor, em caso de reprodução no exterior.
Arquivamento de informação privada
Aqui
existe um grande risco de invasão de privacidade. O texto do Marco
Civil fala em guarda de conteúdo de comunicação privada por parte dos
provedores, algo que não pode ocorrer por princípio constitucional.
Nesse
caso específico há um problema adicional pelo fato de o Brasil não
dispor de uma legislação que trate da coleta e armazenamento de dados
pessoais dos cidadãos. Nesse vácuo, o projeto de Marco Civil da Internet
acaba entrando de maneira incompleta e deixando vários buracos para que
as pessoas possam ter seus dados violados.
Eis as menções (com as partes mais relevantes em
negrito):
Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de Internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.
[...]
§ 2º O conteúdo das comunicações privadas
somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto nos
incisos II e III do art. 7º.
Art. 11. Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, dados pessoais
ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de
Internet em que pelo menos um desses atos ocorram em território
nacional, deverá ser obrigatoriamente respeitada a legislação
brasileira, os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e
ao sigilo das comunicações privadas e dos registros.
Aplicativos obrigados a guardar dados
Outra
inovação é a regra pela qual qualquer site ou aplicativo na internet
com finalidade de lucro ter de registrar os dados de seus usuários por,
no mínimo, 6 meses. Isso passa a ser obrigatório. Por exemplo, quem usa
Skype, WhatsApp ou Twitter saiba que agora tudo o que fizer dentro
desses aplicativos ficará guardado por 6 meses.
Nesse caso,
estipula o Marco Civil, não são os dados de acesso ao provedor de
internet (cuja retenção é prevista em artigo diverso), mas a sites ou
aplicativos no celular ou outros dispositivos móveis –as chamadas
“aplicações de internet”.
Ao consultar especialistas, o
Blog concluiu que não há nada semelhante em qualquer outra legislação no planeta.
Eis
um comentário de uma pessoa que é estudiosa do assunto: “O
armazenamento obrigatório destes dados aumenta, por si só, o risco de
mau uso e vazamento dessas informações, terá um custo e, ainda, impedirá
que um site legitimamente apague uma informação que um cidadão, seu
usuário, solicitou que apagasse, por mais inocente que seja. Igualmente,
veda a própria existência de determinados serviços privacy-friendly”.
Perguntas
a serem feitas: por que um provedor de serviços via um aplicativo de
celular ou tablet precisa guardar dados privados de um consumidor por 6
meses? E o consumidor que desejar deletar imediatamente seus dados de
uso? Não será autorizado? E os aplicativos cujas mensagens desaparecem
depois de lidas (como Snapchat e Wickr)? Terão de mudar seu sistema de
funcionamento no Brasil? Muitas coisas que terão de ser consideradas
pelos senadores na próxima fase de tramitação do Marco Civil da
Internet.
Eis o trecho sobre esse tema:
Art 15. O provedor de aplicações de Internet
constituído na forma de pessoa jurídica, que exerça essa atividade de
forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos, deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de seis meses, nos termos do regulamento.