Juiz no Brasil acumula até 310 mil processos
Média por magistrado é de 5,6 mil casos
Capitais do Rio e de São Paulo são os locais com os casos mais críticos
Vara de Execuções Fiscais Municipais da Fazenda Pública de São Paulo é
a área mais congestionada do Tribunal de Justiça. Fernando Donasci /
Agência O Globo.
BRASÍLIA - Pouca informatização, muito trabalho
por fazer e juízes soterrados em montanhas de processos. Tudo isso
somado a um número sem fim de novas ações, que não param de fazer
crescer os estoques do Judiciário. Esse é o retrato fragmentado das
varas de Justiça de primeiro grau no Brasil, os locais onde começam a
tramitar os processos comuns. Ao longo do último mês, O GLOBO visitou
varas mais congestionadas do país. O acúmulo de processos é tão grande
que, em uma vara de São Paulo, um só juiz precisa dar conta de 310 mil
processos. Lá, são 1,56 milhão de causas divididas para cinco juízes. O
número supera, e muito, a média nacional, de 5,6 mil processos por juiz
da primeira instância. É o cenário de uma Justiça que não anda.
Os
casos mais críticos estão onde a demanda é maior: a capital paulista e a
capital fluminense. Mas há casos alarmantes em cidades pequenas, onde
faltam juízes e sobram processos. A situação do primeiro grau é gritante
em comparação aos Tribunais de Justiça - ou seja, a segunda instância
-, em que a carga média de trabalho por magistrado é de 2,5 mil
processos, menos que a metade do serviço destinado aos colegas da
instância inferior.
Os números são do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) e mostram que o congestionamento da Justiça está bastante
concentrado na primeira fase de tramitação dos processos. Nas visitas
feitas pelo GLOBO, os juízes foram unânimes ao reclamar do excesso de
ações. Segundo eles, vivemos em um país onde toda briga é levada aos
tribunais, inclusive disputas por centavos de Real - um caso desse tipo
foi identificado em São Paulo. Faltam juízes para aparar tantas arestas
na sociedade e políticas públicas para evitar que tudo deságue no
Judiciário.
- O Brasil, ao se redemocratizar, viveu um processo
de hiperlitigiosidade. Isso é fruto de uma série de fatores, um deles é
que as pessoas passaram a ter um nível mais elevado de consciência de
cidadania. Em segundo lugar, o acesso à Justiça ficou um pouco mais
fácil, não só pela implantação de defensorias públicas, como pela oferta
relevante de advogados no mercado. E sem mencionar que há alguns atores
sociais que violam sistematicamente direitos - sugere o ministro Luís
Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Na avaliação dele, o momento agora é de reduzir a litigiosidade como forma de solução mais rápida e efetiva dos conflitos.
-
Nós chegamos a um ponto que se torna imperativo fazer o caminho de
volta. Vamos ter que viver um processo de desjudicialização, no qual o
bom advogado deixará de ser aquele capaz de propor uma boa demanda, mas
sim de evitá-la - analisa.
Para o ministro, aumentar o número de juízes não seria o mais adequado no Brasil:
- Vamos ter que criar uma cultura de menor judicialidade. Cumprir a lei espontaneamente é parte de um avanço civilizatório.
O
GLOBO também visitou duas varas de Justiça onde tudo vai muito bem. O
congestionamento é ínfimo e o trabalho flui. Nas duas varas - uma nas
proximidades de Brasília e a outra em Florianópolis -, o segredo é
organizar o trabalho, criar metas e, claro, ter uma boa equipe para dar
suporte.
Levantamento com base no "Justiça Aberta", um banco de
dados do CNJ, mostra que, em março de 2014, havia 9.920 varas de
primeiro grau no país sob o comando de 10.617 juízes. Elas abrigam 60,4
milhões de processos. De um modo geral, varas de cobrança de dívidas com
o poder público são mais atoladas que as criminais. A explicação dos
juízes é que empresas e grandes devedores investem pesado na defesa, que
acaba conseguindo protelar a execução da dívida. Nas criminais, réus
são em boa parte pobres, sem recursos para fazer o mesmo.
O
problema das execuções fiscais é dos mais graves para impedir que a
Justiça ande. Dados do CNJ mostram que, dos 92 milhões de processos que
tramitavam em 2012, 30 milhões eram de execução fiscal. Desses, a maior
parte era por dívidas municipais, especialmente de IPTU. Para o
conselheiro Rubens Curado, do CNJ, a quantidade de ações é reflexo da
cultura de não pagamento de tributos no Brasil e da ineficiência do
modelo atual de cobrança, totalmente judicializado.
- O
procedimento é moroso e impõe ao Judiciário a localização do devedor e a
busca dos bens. É um modelo falido, precisamos buscar um novo. Não há
nenhuma melhoria possível do Poder Judiciário que não passe pelo
problema da execução fiscal. O modelo atual de judicialização total de
ações, inclusive aquelas fadadas ao insucesso, transforma os tribunais
em um cemitério de processos aguardando a prescrição - observa.
Segundo
o CNJ, o tempo médio em um processo de execução fiscal no Brasil é de
cinco anos somente para fazer a citação do réu - ou seja, para avisá-lo
da cobrança. Existe um projeto de lei do Executivo tramitando no
Congresso Nacional desde 2009 com um novo modelo de cobrança de dívida
ativa. Primeiro, a administração pública citaria o réu e determinaria o
bloqueio provisório dos bens, para garantir o pagamento da dívida. Só
depois o processo iria para o Judiciário.
- Essa proposta traria a
redução de 80% a 90% dos processos que chegam ao Judiciário. Há um
consenso no meio jurídico de que o modelo atual é falido e inviável, é
preciso promover a desjudicialização das cobranças - diz Curado.
Dados
do "Justiça em Números", também do CNJ, mostram que, em 2012, o
congestionamento médio do Judiciário era de 69,9%. Isso significa que, a
cada 100 ações que chegam aos tribunais, apenas 30 são julgadas. O
restante das causas permanecem nos escaninhos, às vezes por anos,
aguardando solução. Considerando apenas a primeira instância da Justiça
Estadual, a taxa é de 75,2%.
Há varas em que esse percentual
atinge 96%, como a de execuções fiscais de São Paulo e a de Fazenda
Pública do Rio de Janeiro. Uma vara criminal em Porto Seguro, na Bahia,
ostenta índice de congestionamento de 90%.
O "Justiça em Números"
leva a crer que o problema do primeiro grau não é desídia dos juízes,
mas excesso de demandas. Em 2012, cada juiz na primeira instância
estadual julgou 1.090 processos. Em média, três processos por dia,
contando finais de semana e feriados. O número é alto, mas insuficiente
para baixar os estoques.
Depois de enfrentar a carga intensa de
trabalho, vem a inevitável frustração. O sistema judicial do Brasil
permite que uma decisão de primeiro grau seja revista pelo Tribunal de
Justiça. Em muitos casos, o processo vai parar no Superior Tribunal de
Justiça (STJ) e até no STF.
Para mudar esse quadro, a Associação
dos Magistrados Brasileiros (AMB) promove uma campanha de valorização do
juiz de primeiro grau. A intenção é incentivar a aprovação de projetos
de lei no Congresso Nacional para diminuir o número de recursos
possíveis. A ideia é que a parte tenha o direito a recorrer apenas uma
vez ao Tribunal de Justiça. Em seguida, o processo seria encerrado.
A
sobrecarga do Poder Judiciário não é um problema apenas no Brasil. A
Justiça Federal dos Estados Unidos está próxima do estrangulamento,
segundo avaliação do próprio Judiciário, devido ao excesso de processos
civis e criminais que chegam aos gabinetes dos 844 magistrados
espalhados pelos 50 estados e o Distrito de Colúmbia (onde fica a
capital do país). As 94 Cortes Distritais e os 12 Tribunais de Apelações
que compõem o sistema federal, antevendo uma crise, solicitaram ao
Congresso, em setembro, a abertura de 91 vagas de juízes para reforçar
32 jurisdições, nas quais está declarada situação de emergência judicial
por sobrecarga de trabalho.
Nos EUA, os distritos judiciais
equivalem às regiões dos tribunais federais brasileiros. Eles contam com
677 juízes federais, que lidam anualmente com pouco mais de um milhão
de ações (entre as novas, as que são concluídas e as que ficam
pendentes). Isso significa que cada magistrado está cuidando de 1.546
processos, em média. Comparada à carga dos juízes brasileiros de 5,6 mil
por magistrado, parece aceitável. Mas, nos EUA, o corte para definir
situação de emergência é menor.
Para evitar o colapso do sistema,
as Cortes definem sobrecarga considerando apenas processos complexos,
por exemplo, assassinatos, lavagem de dinheiro, crimes ambientais de
ampla repercussão e fraudes. O sinal amarelo acende com uma média de 430
processos complexos por juiz. A partir de 600 casos por magistrado, a
situação é de emergência, o que ocorre em 17 dos 94 distritos.
Já
nos 12 Tribunais de Apelações, equivalentes aos que atuam os
desembargadores federais no Brasil, passam por cada painel de três
juízes anualmente, em média, 2.849 ações, das quais 1.033 representam
casos complexos. A Justiça considera grave qualquer situação acima de
500. Há sete tribunais de apelações em situação de emergência
atualmente.
Colaborou Flávia Barbosa, de Washington